É castigo ser aposentado e continuar a receber em casa proventos pagos com recursos públicos depois de cometer crimes?
AS RECENTES e pedagógicas decisões do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) de afastar magistrados que deixaram de observar os mais elementares deveres funcionais e incorreram em práticas de corrupção e malversação de dinheiro demonstram a maturidade alcançada por esse importante órgão de controle externo. Ao mesmo tempo, nos levam a refletir acerca da aposentadoria compulsória concedida a magistrados e membros dos tribunais de contas envolvidos com essas situações. No mínimo, despertando certo grau de perplexidade.
Como está expresso no título deste artigo, é castigo ser aposentado e continuar a receber em casa proventos pagos com recursos públicos após cometer esses crimes? Ou terá sido uma bênção? Em busca de uma resposta digerível, não é à toa que o tema tenha se inserido no Parlamento, a partir de projeto de emenda constitucional apresentado pela senadora Ideli Salvatti (PEC 83/09) e que está prestes a ser analisado no Senado Federal.
Ao decidir dessa forma, o CNJ nada mais fez do que seguir a "penalidade" prevista no inciso VI do artigo 42 da Lei Orgânica da Magistratura Nacional e lei complementar nº 35/79. Editada em um momento singular das instituições, a chamada Loman procurou preservar a independência e a autonomia dos integrantes do Poder Judiciário contra atos arbitrários do passado. A realidade hoje é outra.
O magistrado age com total liberdade e tem a seu favor o preceito constitucional que lhe confere o direito à vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de vencimentos (artigo 95 da Constituição Federal), justamente os obstáculos à punição daqueles que incorrem em faltas graves no exercício de suas atividades.
Esses obstáculos se apoiam em dois pilares: 1) a vitaliciedade só pode ser afastada por sentença transitada em julgado; e 2) a previsão da aposentadoria compulsória, ou seja, direito à percepção dos subsídios integrais ou proporcionais (dependendo do tempo de serviço), autorizado pelo disposto no artigo 93, VIII, da Constituição, em conjunto com o contido no inciso VI, do artigo 42, da Loman.
De fato, a previsão em causa não encontra base racional lógica. É, antes, uma construção que foge ao razoável e agride o bom senso, configurando violação aos mais elementares preceitos de moralidade pública e administrativa que a Constituição de 1988 expressamente impõe. Sua derrisória e final mensagem é que brasileiros, sobretudo os que integram uma casta privilegiada, após banquetear-se em práticas criminosas, serão "punidos" com régia aposentadoria, mesmo que não preencham os requisitos legais para tanto.
Se o exemplo é bizarro, o que dizer daquele magistrado honesto que tenta, voluntariamente, se aposentar com proventos proporcionais ou integrais? Não, esse não pode. O benefício só alcança aquele que praticou ato ilícito a juízo do próprio tribunal ou do CNJ, depois de submetido ao amplo direito de defesa em processo legal administrativo disciplinar. Vá explicar...
Por outro lado, ao fazer uma comparação entre os magistrados e os demais agentes públicos, não se vislumbra idêntico tratamento ao presidente da República em caso de crime de responsabilidade (Poder Executivo) nem aos deputados e senadores em caso de processo político-parlamentar (não judicial, portanto), muito menos aos servidores em geral, que podem ser demitidos a bem do serviço público sem direito nenhum.
A "punição" também agride o próprio sistema contributivo de aposentadoria a que estão submetidos todos os servidores públicos, incluindo os magistrados e membros dos tribunais de contas. Nele estão previstas a aposentadoria por invalidez permanente, a aposentadoria compulsória (70 anos) e a aposentadoria voluntária, desde que cumpridos ao menos dez anos no serviço público e cinco anos no cargo efetivo de final de carreira.
Nunca, porém, a da aposentadoria compulsória com proventos proporcionais em decorrência de penalidade aplicada em processo administrativo-disciplinar. Como se vê, manter a aposentadoria compulsória nesses casos é afirmar, em alto e bom som, que nem todos são iguais perante a lei. É indigno, injusto, imoral. Agride a isonomia contida na norma constitucional.
Configura privilégio, descolado do conceito de cidadania. Reformado e revigorado nos últimos anos, é chegada a hora de o Judiciário brasileiro provar sua maturidade e enfrentar essa questão com coragem e determinação, nos fazendo crer que a velha e reconfortante máxima "a lei é para todos" ainda não nos abandonou. A sociedade agradece.
OPHIR CAVALCANTE, 49, é presidente nacional da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil).