Eu penso ser um despropósito exigir que o advogado seja o delator do seu cliente. Concordo com o Órgão Especial da OAB nacional que aprovou (em 21.08.12) parecer da conselheira Daniela Teixeira no sentido de que os advogados não estão entre as entidades e agentes que devem informar (delatar) seus clientes ao Coaf. A nova lei de lavagem de dinheiro não fez referência expressa aos advogados, que contam com a obrigação de sigilo (Valor de 22.08.12, p. E1).
Todo cidadão tem direito à assistência jurídica de um advogado, a quem ele confia muitas informações e documentos sobre sua vida privada, seus relacionamentos e seus negócios, para a eficaz defesa dos seus direitos e observância da justiça. Em todos os países democráticos e civilizados, de outro lado, tudo que o advogado sabe em razão da sua profissão deve ser mantido em sigilo (dever de sigilo, que não foi pensado para o advogado, sim, para o próprio cliente).
Nossa vida pessoal e social seria um caos se nosso advogado ou médico ou psicólogo, logo após concluída a consulta, fizesse divulgação dos fatos e documentos a ele confiados. Mais terrível seria se a lei dissesse que ele, de posse tudo, delatasse o cliente para autoridades públicas, caso entendesse que alguma operação fosse duvidosa. Quem se arriscaria procurar um advogado e confiar-lhe sigilos e documentos se existisse a possibilidade de ele se transformar no seu algoz delator?
A nova lei de lavagem de dinheiro apresenta dubiedade nesse ponto. Há quem entenda que o advogado deve “dedurar” o cliente no Coaf, sob ameaça de pesadíssima multa (até 20 milhões), quando se vislumbra uma “operação suspeita”. O surrealismo consiste em transformar todo escritório de advocacia em uma delegacia de polícia e todo advogado em policial delator. O cliente, buscando assessoria jurídica, confia tudo ao seu advogado e, em seguida, antes mesmo de chegar em sua casa, está o advogado fazendo denúncia contra ele no Coaf.
Nenhum país do mundo, pelo que se sabe, quando o advogado funciona como defensor de um acusado ou quanto atua como consultor jurídico, o obriga a quebrar o sigilo profissional, que não foi inventado para ele, sim, para o cliente. Discussão existe quando ele assessora uma transação comercial, bancária, imobiliária, financeira etc. De acordo com nossa opinião, em todas as hipóteses é preciso preservar o sigilo profissional, sendo inconstitucional a interpretação que obrigaria o advogado a delatar o cliente (art. 9º, inc. XIV). Em nenhuma situação justifica fazer preponderar o interesse da investigação relacionada com a lavagem de capitais (dever de comunicação das operações suspeitas), que é coletivo, sobre o interesse, também da sociedade, de preservação do segredo profissional do advogado. É que existem outros meios para se fazer isso (e, talvez, até com mais eficiência).
Não existem direitos absolutos (é bem verdade). O sigilo profissional do advogado não é absoluto. Investigar o crime organizado no Brasil assim como a lavagem de dinheiro é tarefa impostergável. Mas tem incidência aqui o princípio da proporcionalidade, especialmente no que concerne aos seus subprincípios da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito. Por força do primeiro (necessidade), toda intervenção nos direitos fundamentais deve ser a mais benigna com o direito fundamental afetado. Consoante o segundo, o custo da intromissão nos direitos fundamentais deve ser sopesado com seus benefícios.
Fazendo-se comparação entre a medida adotada pelo legislador (quebra do sigilo profissional do advogado) e os outros meios alternativos (de investigação da lavagem), nota-se que o Estado não dispõe de um, sim, de incontáveis outros meios probatórios e recursos. Não é necessário chegar ao extremo de sacrificar um direito coletivo tão relevante, como é o caso do segredo profissional do advogado, para satisfazer outro interesse, também relevante, mas que gera um custo exageradamente intenso e descomunal para todos. Temos que conter essa onda denuncista mundial, típica dos Estados autoritários, que pode culminar com uma violação sem precedentes ao direito de defesa e de assistência jurídica.
*LFG – Jurista e cientista criminal. Fundador da Rede de Ensino LFG. Codiretor do Instituto Avante Brasil e do atualidadesdodireito.com.br. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001). Siga-me nas redes sociais: www.professorlfg.com.br